Los Cerros – Blog do Juan Esteves
Jujuy é uma província do noroeste argentino com fronteiras a leste e ao sul com a província de Salta, ao norte com a Bolívia e a oeste com o Chile. Montanhas predominam em sua geografia formada pelo altiplano pouco povoado e de radicais mudanças térmicas. Já Quebrada de Huichara é uma antiga cidade pré-hispânica. Situa-se sobre camadas geológicas em forma de ponta às margens do rio Huichaira na confluência com o rio Grande. Lugares de sítios arqueológicos cercados por colinas, dunas coloridas e de ascendência mística e anímica.
Foi nestes lugares que a artista e fotógrafa paulista Elaine Pessoa iniciou sua viagem artística- e também espiritual, que traz como um de seus resultados o livro Los Cerros ( Fotô Editoral, 2020), nome literal emprestado de suas geografias. Uma publicação especial em vários sentidos que une a fotografia ao desenho e heranças ancestrais à tecnologia, coisas aparentemente distantes mas que se imbricam em uma produção gráfica autônoma e essencialmente contemporânea no que diz respeito ao design e ao conteúdo mais conceitual.
Los Cerros é um volume totalmente impresso e construído artesanalmente no atelier que a autora divide com a professora Fabiana Bruno, pesquisadora do Departamento de Antropologia da Unicamp e o curador e publisher Eder Chiodetto. É também a primeira experiência de sua editora no controle absoluto sobre suas publicações, independentemente de continuarem a imprimir em outras gráficas. A impressão foi feita em uma impressora semi-industrial a laser, impressões serigráficas na capa, dobras e costuras feitas a mão e arrematado com pinturas aplicadas pela autora diferenciadas para suas exclusivas 120 edições.
A ideia de capas exclusivas para um único volume impresso vem desde tempos remotos, mas na indústria editorial vem de encontro aos movimentos iniciados pelas editoras americanas contrapondo-se ao chamados livros digitais ainda no final dos anos 1980 quando pioneiramente a escritora americana Judy Malloy publicou seu romance Uncle John, que era possível ler em um computador Apple IIe, antecipando os chamados e-books. No Brasil, em 2011 a Cia das Letras publica a antologia Entrevistas da Paris Book Reviews volume 1 com uma edição de 3 mil exemplares com capas diferentes. Em 2017 chegamos as edições mais artesanais com o romance Jaqueta Branca (Carambaia, 2017) do americano Herman Melville (1819-1891), uma edição de mil exemplares, cada um deles com uma capa exclusiva em Cianotipia, um desenho de ondas entre o mar azul, composto pelo Estúdio Margem em parceria com a artista Elizabeth Lee, que revelou a série completa em seu atelier.
Em Nimbus (Fotô Editoral, 2016), Elaine Pessoa já aproximava-se mais do desenho e de experimentos gráficos, mas mantinha-se conectada totalmente a fotografia. Trazia uma experiência de rompimento com o suporte tradicional usando o finíssimo papel Bibloprint e aproveitando sua quase transparência ao criar seus instigantes layers, realçando sua condição de quase inefável.
Assim como esta publicação, Los Cerros prossegue com as mesmas características em seu conceito expandido e nos leva as reflexões do alemão Walter Benjamin (1892-1940) em seus “Rastro e Aura”, o primeiro como “presença de uma ausência e ausência de uma presença” e a segunda como a “aparição de uma coisa distante por mais perto que ela esteja” (Walter Benjamin, rastro, aura e história, Editora UFMG, 2012, organização de Sabrina Seldlmayer e Jaime Gynzburg).
Em Los Cerros a autora também utiliza uma memória poética na construção – através dos vestígios que encontrou – e em sua observação gráfica nos rastros numinosos que surgiram. Entretanto, diferentemente do livro anterior, sua verve artística avança sobre a fotografia a ultrapassando pelos desenhos e frottages. O que era transparência e fluidez no raro aparecimento da cor preta do primeiro, torna-se opacidade e o predomínio desta cor, sustentada pelo papel Markatto Stile Naturale, cuja leve textura é incorporada ao interessante projeto gráfico que a autora criou juntamente com o designer Fábio Messias.
Elaine Pessoa fez uma residência artística no Museu en los Cerros (MeC) dedicado a fotografia em Tilcara na região de JuJuy. A autora já havia visitado o deserto do Atacama, no Chile, no início de 2019, mas conta que não tinha visto um lugar assim como na Argentina quando lá chegou em setembro de 2019. “ Foi espetacular vivenciar os costumes a cosmologia do lugar, um contato mais próximo do que no Atacama…” Ela foi a convite do argentino Lucio Boschi, diretor e organizador da entidade, que apesar de estar em um lugar remoto, está conectada com museus importantes como o Guggenheim e promove bolsas de estudo em Buenos Aires e tem um forte vínculo com a comunidade, as vezes assessorado pela curadora, fotógrafa e editora argentina Julieta Scardó, habitué dos eventos fotográficos brasileiros.
Para Fabiana Bruno, a autora “capta as marcas profundas de um passado milenar de histórias e de uma resistência silenciosa de povos originários que percorriam estas regiões andinas anteriores aos incas.” Uma maneira singular que as comunidades remanescentes encontraram para enfrentamento de rupturas e fragmentações, prossegue a pesquisadora, “resguardando uma reverência a Mãe Terra, Pachamama.”
Elaine Pessoa conta que foi uma semana de imersão com o intuito de trabalhar com as texturas locais, situações telúricas a lembrarem suas conexões primevas com as artes plásticas. “Tive um experiência muito particular… trabalhando no chão, ventava muito e meus papéis voaram todos em busca de uma única árvore, que eu já tinha fotografado…. Comecei a fazer desenhos, frottages das árvores meio automáticos. Eu ia colocando uma pedra em cima e acabei descobrindo que isso fazia parte de um ritual telúrico.”
Impressionada com a situação, percebeu que o livro nascia do desenho e então começou a olhar graficamente para a fotografia. “A luz é muito intensa! Até mesmo a noite… Percebi que estas fotografias teriam que ter este contraste e o desenho. Estudei as mitologias, misturando detalhes, encontrando interferências com o grafite.” Daí a produção final que utiliza pretos profundos e até mesmo referências metafísicas como os desenhos ao fusain, uma essência da natureza ainda mais ancestral nos rituais incorporada pela arte há milênios.
Em sua narrativa a percepção destas circunstâncias são visíveis, assim como a feminilidade que emana das imagens, a Pachamama, a deidade máxima dos povos indígenas dos Andes Centrais. Como escreve Fabiana Bruno: Elaine foi mimetizando-se com a paisagem para admirar a montanha, uma rocha solitária, um grande cacto, o aroma amargo da coca, as plantas, os rituais e a música dos pueblos andinos.“ A estas “visões” surgem no livro pássaros e até mesmo ilusões zoomórficas entre a geologia da região.
Ao trabalhar no contraponto entre as emoções anímicas e a fotografia- produzida por um aparato mecânico fruto da ciência- a autora coteja sua própria posição humana através de uma busca eidética, espelhando-se nas formas de sua topologia. As formas geológicas encontradas mantêm-se com suas propriedades mas tornam-se indistintas seja na imagem mais fotográfica ou nos desenhos, mais a sugerir a percepção dos fenômenos e de seus atributos do que a elucidá-los. É uma expressão de seu interior e impalpável.
O historiador austríaco Ernst Gombrich (1909-2001) em seu clássico Art and Illusion: A Study in the Psychology of Pictorial Representation, publicado em 1960 a partir dos seminários na Bollingen Foundation (Princeton) em 1956, no diz que é o poder da expectativa e não o poder do conhecimento conceitual que molda o que vemos na vida não menos que na arte. O que encontramos nesta viagem da autora representado pelo amálgama da arte com o sensorial é justamente esse espanto da experiência energética transferida para o papel.
A proximidade que a artista teve com o lugar seja fisicamente ou espiritualmente é o ponto de partida mais provável para representação do desconhecido. “Uma representação existente sempre exercerá seu poder sobre o artista, mesmo quando ele se esforça para representar a verdade.” diz o historiador. Psicologicamente pensando em Los Cerros encontramos uma forte representação pictórica que passa por essa proximidade com a natureza, bem como assimila a função maior da tradição local. Como a autora mesmo diz, o encontro com as senhoras da região, a presença forte do feminino, “a terra como provedora, aquela que rege tudo na região, o materno que nos abraça e que protege.”
Uma das razões de um resultado consistente em Los Cerros é sem dúvida a dedicação da autora. Para construir seu livro ela passou pelo workshop Making Photobooks da curadora, editora e pesquisadora japonesa Yumi Goto, fundadora da Reminders Photography Stronghold, uma galeria de Tokio multi-fotográfica com uma equipe de curadores que trabalham próximos a ideia dos fotolivros. (https://reminders-project.org/rps/ ). Os primeiros testes foram com o papel Rives, na busca de realçar a sua textura com a da terra, terminando pela opção do Markatto. Para as pinturas da capa foram várias tentativas até encontrar a diluição da tinta. Ao todo foi um mês de trabalho para as 120 cópias. A edição é trilingue, português, espanhol e inglês e o lombo da publicação, para facilitar a abertura das páginas e também estruturar o livro está colado apenas na quarta capa.
“Los Cerros é essa tentativa assertiva de fazer um fotolivro, no qual o movimento da fotografia finca-se transversalmente em outras grafias. As fotografias nascem de uma outra forma de ser fotografia. Nascem com a experimentação de um desenho para logo ultrapassá-lo.” escreve acertadamente Fabiana Bruno. E, certamente, o leitor familiarizado com a história da construção do que hoje chamamos fotografia, desde o século XIX ao XXI, encontrará para seu prazer inúmeras conexões com estas duas propostas, desde a bela Vista da Janela de Le Gras, do francês Joseph Niépce (1765- 1883) até os contemporâneos desenhos ao fusain do americano Richard Serra a nos lembrar que a boa arte não é só duradoura mas mutável.
Texto: Juan Esteves
Disponível em: Blog do Juan Esteves