Âmbar: O Livro Bonito de Elaine Pessoa

O texto é fruto de um encontro entre o artista e o autor em um café, no bairro da Vila Madalena em São Paulo. As estampas foram colocadas sobre a mesa. O ensaio foi escrito de memória em uma tarde tranqüila de domingo, 21 de junho de 2009.

Tento compreender sempre a natureza do trabalho da gravura em metal por forças diretas e indiretas, gravadas nas placas de cobre. Podem ser em ponta seca, buril ou água-forte (uma técnica antiga utilizada para agilizar o desenho na superfície da matriz) quando a luz e a sombra recorrem, freqüentemente, as mãos para construírem um diagrama das forças em relação à natureza e ao tempo. 

A dinâmica da paisagem encontra-se nos horizontes estreitos, chanfrados e polidos como pequenas jóias na arte da gravura em metal, quando, pelos procedimentos; conseguimos entender os sonhos vistos, admirados e por que não, cristalizados pelos desejos do artista em preservar a forma original sentida pela linha, através da observação e da memória. 

A linha é o símbolo da luz conduzida em uma espécie de cor enclausurada, nos pontos cardeais da matriz. Uma norma orgânica colocada pela sensibilidade, em um espelho vermelho geralmente pequeno, ampliadonos sonhos pelas imagens modeladas na lâmina: uma força em movimento.

Se pensarmos num modelo diminuto da natureza, nos detalhes especiais das folhagens de um jardim, nas sombras que recortam a luz da copa das árvores, entre espécies descobertas nos acidentes, nas dobras e marcas recolhidas pelo trabalho coletor do brunidor e do raspador na matriz, podemos imaginar e entender como o trabalho de Elaine Pessoa começou a se depurar através da linha gravada até amadurecer pelo ponto, pelo toque das retículas gráficas oriundas da arte da fotografia que hoje, dominam a atividade comercial de impressão de livros. Tudo, no mundo mutante dos impressos em geral, lidam com a pulga da retícula, que engana e encanta os olhos, pela busca da beleza como estranhas lentes que se aproximam do óbvio. Este é o verdadeiro esforço da artista que quer preservar dentro de si um olhar novo para este paraíso de fibras e reproduções, ilhando o espírito na realidade do papel cremoso. Mostrando no tempo o brilho do dia e da noite, mutáveis pelas variações das estampas quentes e frias, noto nos espaços macerados pela prensa, um campo. Entre uma obra e outra, geralmente em papéis alemães e italianos, preservando, na técnica da fotogravura a imagem detalhada das plantas inspiradas pelos mistérios do Éden, pelos mistérios das sombras que tocam as coisas pela luz negra, aqui, oferecem pelo impresso tradicional, as metáforas das viagens que os olhos fazem entre os ramos livres do cobre polido e as marcas secas pressionadas no algodão. As matrizes são organizadas no papel como capítulos definidos.

Por algum tempo, através da água-forte e da ponta seca, a artista Elaine Pessoa procurou investigar as substâncias que compõe as plantas, utilizando o desenho das células da vida pela força-dimensão dos instrumentos diretos-elétricos, em uma variedade de formatos diminutos como lâminas de vidro, na observação dos fenômenos de crescimento e da multiplicação. Mantenho o mistério. Os vegetais compunham lado a lado uma curiosa expectativa de tempo e movimento, de cores e conhecimentos encontrados disponíveis em ateliês coletivos e privados, dentro e fora do país. Mas por mais que se observasse a natureza e a geometria das folhas, caules, frutas e flores, sempre, de algum modo, era o Éden interior que emergia, alheio a um banho químico, alheio às rebarbas, onde as lembranças guardadas ainda na infância eram despertadas na placa (no coração de uma mulher assustada com a sombra). 

A ponta seca e a água forte produzem o esforço e a tensão desta construção, desta poesia em direção as esferas, aos quadrados e retângulos como espaços preparados para entrar a força no papel. Portais. São escolhas promovidas na pequena escala como a passagem do espírito pelo buraco de uma agulha. 

No início, os trabalhos eram janelas cobertas por frestas de veludo, entre rebarbas de cor preta. O fundo podia ser cinza, ora polido, ora uma brisa. Nos detalhes dos brotos, a sua gravura era dimensionada pelo amor dos olhos curiosos que se transformavam em lentes. Estavam procurando, na cauda das linhas gravadas, a origem para a representação bonita de um cultivo pelo ornamento.

A fotografia, para Elaine, faz a ponte entre a observação e a memória dos fatos apresentados e serve como registro tátil de sua busca, de sua liberdade em direção ao ponto: a retícula. 

É pela retícula que a artista procura encontrar-se em muitas de suas novas gravuras, preparadas nos banhos luminosos onde o grão; célula maior de luz entre a fortuna de cobre e o papel, estão próximos do espectador-visitante que, como eu, pode folhear e puxar uma por uma, as estações margeadas entre os marrons dos dias desérticos e o azul turquesa dos contos das Mil e Uma Noites. 

Bons presságios para o leitor que observa, na gráfica contemporânea, um pouco do espírito da mulher que encanta os sultões.

Nas pequenas gravuras cheias de quedas românticas pelos jardins, histórias são sussurradas nas matrizes unidas em tamanhos iguais. Uma noite de núpcias entre o preto e o azul, entre o ponto e o relevo, entrelaçados pelo véu de tinta estão nítidos como um lago prateado. Nas mãos, sentimos a gravura em talho doce maculada pelos pontos ásperos da fotografia, revelada no metal como a pele estranha de um deus adormecido cheio de escamas. Este deus inspirado está camuflado na imagem do seu mundo. Espera até ser observado pela luz. Despertando na forma de uma palmeira, move os galhos e torce algo além do tempo. Silêncio. Um caule de samambaia transforma-se no arco estranho perfurado tanto por pontos como por linhas úteis trabalhadas no computador, uma das moradas do desenho. O registro para colocar as matrizes no berço da grana de algodão é perfeito. A técnica produz a lente mágica que se move entre as linhas da íris buscando um caminho de vida para a estampa, como um andarilho seguindo enfim, as sombras deixadas pela lua cheia. Posso decidir fechar os olhos e conservar na memória uma imagem clara de terra batida pelas pegadas dos elefantes, transportando-me tranqüilo para um continente perdido. Há um conforto pela limpeza das coisas. O azul representa as constelações mais distantes coroando uma montanha em frente ao mar, domando os meus instintos de fuga enquanto percorro o problema. Sinto. Escalo cada uma das folhas com as mãos. O seu olho, ao que parece, é uma lente natural, símbolo de um espírito passeando neste jardim trilhado por sombras. Esses olhos, essas lentes percebem nas imagens os pontos claros e escuros do pó raro dos cristais (os mais belos), moídos e atirados entre as folhas das samambaias formando, na prata branca, a curiosidade de uma menina colhendo só a luminosidade revelada pela tinta.

Ulysses Bôscolo.